"Uma atividade voluntária exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e alegria e de uma consciência de ser diferente de vida cotidiana." (Huizinga, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 5ed. Saão Paulo: Perspectiva, 2007)
De todos os brinquedos que a vida me deu, o que mais me cativou foi o de jogar com as palavras. O jogo se faz completo quando escrevo e alguém replica, quando replico o que escrevem... É na intenção de reunir jogadores e assistência, que meu blog é feito.



quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Desreflexões sobre começos e fins.

A cultura começou o humano
e terminou a igualdade.
A liberdade é o fim da tutela
e o começo da solidão.
O tropeço é o começo da queda
e o fim do passo.
O fim da castidade
vem no começo do sexo.
O nó é o começo do choro
e o fim do laço.
O começo da amizade
é o fim da solidão. 
O ar está no começo
e no fim da explosão.
O joelho começa na coxa
e termina na perna.
A casca quebrada é o fim do ovo
e início do pássaro.
O trabalho destrói o ócio
e inicia o cansaço.
A muda é o começo da planta
e o fim da semente.

O ódio é o começo do fim
de quem o sente.
A pele é o fim do mundo
e o começo da gente.

O nascimento é o fim da gravidez
o peito finda a fome, até que comece outra vez...
o primeiro passo é o começo do fim do colo
a paixão começa onde termina a paz
e a paz começa... 
enfim, ninguém sabe mais
então para mim, tanto faz.

Pode vir, 2016. 
Com paixão, com começos e fins. 

Sem mais,
Elimacuxi.


segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Fartou-se no banquete de uma noite
cheirou, tocou, esfregou, arranhou
energicamente
lambeu, sugou,
mordeu, deglutiu.

Raiaram-lhe depois 
as razões e o dia:
e era finda a poesia.

À noite, entretanto,
quando só, no quarto quase escuro,
ainda mete os dedos na boca, 
um por vez
a língua minuciosa, escavando os cantos
em busca de um sabor que revele
um resquício daquela pele.

Consome-se assim, há semanas
dispensou o uso de pijamas
e já não lhe resta nenhuma
de suas falanges distais.

É noturna e disforme essa fome, fome, fome...
dessas que enlouquecem a um homem 
dessas 
que ninguém sente mais.

domingo, 27 de dezembro de 2015

Re-secando

há aves diversas
vento abundante e poeira em vórtices
velado silêncio sobre a melancolia cotidiana
mangas e limões se decompõem
caídos entre as flores
e eu me recomponho
revirando doces ócios
de amores decompostos.

meu corpo se adominga
lentamente se cava e se suspende
solta-se sem hora nem susto
celebra-se vivo, respira,
ressente.

de repente
suspiros provocados pela pele
saram
arrancados na raiz
por afiadas razões

e severamente
re-secamos.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

 
quando o coração me vem na boca
já não é pouca a emoção que brota
o amor, a gente sabe, a gente nota
quando é faísca e já quer se espalhar
e há um terreno, um campo em que,
se ele nasce
não tem mais freio, não se pode evitar:
peito menino, pouco importando a idade
feito poeta é o meu jeito de amar
e eu bem sei: não tem conveniência
e eu bem sei o quanto ele pode arder
e eu bem sei, mas nada nada disso importa
quando me brota assim
um novo bem-querer.

Boudoir Noir

O lindo trabalho de Mel Masoni, da Revista Dénudé







Me resta a sombra do sabor
a cor de cada som
a textura do olhar baço
e o ruído do teu cheiro...

que memória te resta
do momento em que
minha boca
te abraça e te aquece
inteiro?

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Salve a rainha


Salve a rainha o silêncio e o mistério
salve o calor de sua energia
salve a rainha da água e do ar
salve a rainha, memória, magia
salve a rainha dos povos da mata
salve a rainha que da vida trata
salve a rainha que sabe, conhece
salve a rainha que a tudo enobrece
salve a rainha que vive encantada
salve a rainha que veio, chamada
salve a rainha raiz céu e chão
salve a rainha luz na escuridão
salve a rainha que serve-se pura
salve a rainha que é cor, som, textura
salve a rainha que toca e que cura 
salve a rainha força e resistência
salve a rainha da sã consciência
salve a rainha mãe da própria lei
salve a rainha que vive sem rei
salve a rainha das selvas e areias
salve a rainha
que sou
e sereias.

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Des-pre-tensão

Imagem originalmente postada em biscatesocialclube.com.br

Com quanta graça e força
a vida, essa coisa torta
me atira assim, meio morta
nos teus meio-mortos braços.
E logo, sem embaraço
um lago que à alma afaga
nos lava e nos desafoga.

Os sustos desaceleram...

Esse instante que associa
pele, pulso, poesia
- desses que nem se diria
disponíveis hoje em dia -
com toda sua energia
nos tirou medo e cansaço,
desmentiu as leis do espaço
do dia sacou as horas...
felizes nós caminhamos
entre jovens e senhoras
e um dia
valeu por anos.

Sensíveis, desassombrados
nos cedemos solidários
sedentos e solitários
a saciar nossos cios
e eram tantos desafios
saudades, dores dementes
pecados impenitentes
cansaços, medos, enganos...
os lençóis formaram ondas
de um mar branco e bravio
onde juntos navegamos.

De lado muito trocamos
os nossos dois corpos lassos
e tanto fez o ar escasso
tanto fez se par ou passo
seriam a consequência:

com a doçura desse abraço
destroçamos nossa ausência
quebrando com o descompasso
da nossa (im)própria existência.



segunda-feira, 30 de novembro de 2015


ah essa madeira
se fincou no meu pescoço...

e em mim, refaço
(memória que se reforça)
essa coisa
de carne e osso:
tanta energia
num só abraço.

domingo, 29 de novembro de 2015

Pra quê vale a poesia?

Quando eu era bem pequena meu pai se orgulhava de me ver decorar as longas letras dos sambas do Moreira da Silva. Depois ele me ensinou a ler com um gibi do Pato Donald. Daí fui pra escola e descobri a poesia nos livros didáticos. E a coisa nunca mais parou.

Consumi vorazmente o que me caiu na mão. Alguns versos ainda estão gravados na memória, tantos anos depois: "Essa menina, tão pequenina, quer ser bailarina"; "A lua foi companheira, na praia do Vidigal, não brilhou, mas mesmo oculta, nos recordou seu luar...", "vou danado pra Catende, vou danado pra Catende, vou danado pra Catende com vontade de chegar..."... Ah... o tempo me trouxe muitos nomes, mas os brasileiros foram sempre a preferência. E dois portugueses, o Pessoa, que não sei bem porque na minha cabeça era o mais antigo, o pai de todos, e Camões, com seus sonetos. O discurso em verso nunca deixou de existir na minha vida. Lido, depois escrito.  

Acho que foi lá pela quinta série que eu conheci a Rita Bonfim e a Cibele Pereira. Elas gostavam de escrever. Com Cibele, eu compartilhava o diário. Com a Rita, numa lógica meio competitiva que eu herdara das cantorias de repente nordestino ouvidas em casa, comecei a fazer meus primeiros versos. Foi por ali que observei o poder terapêutico dessa prática. Com o passar dos anos, fui observando que, com a escrita, eu me escrevia, fazia-me poema, obra de arte para meu usufruto. E de quebra teria esse mundo meu, esse duplo, onde poderia fingir tão completamente que me permitiria sentir a dor da dor que deveras sentia, poderia me consumir nas horas em que não era consumida, pura mão de obra, pura carne crua a velar pela riqueza de outrem. 

Nesse contexto, muitas vezes ouvi e me perguntei: pra quê vale a poesia? Uma vez escrevi no meu diário, 1988: "adoro literatura, estudar a língua pelo que os poetas escreveram sem esperar que isso acontecesse com o que eles botaram no papel. Hoje eu estudo Florbela Espanca, será que um dia alguma coisa dessas que escrevo, meu bem, poderia ser estudada assim? HAHAHA, que bobagem!".

Era isso, a vida não dava muita chance, eu não esperava da escrita muito mais do que uma forma de me construir, tijolo a tijolo, como um porto no qual eu pudesse me esconder nas horas vagas. Observo que há muito de ego no desejo de ser estudada. Claro que eu queria ser famosa, importante, observada pela qualidade do que eu escrevia e do que eu era capaz de sentir. Quem não sonhou com coisas grandes aos quinze, dezesseis, viveu essa idade? Mas o desejo era totalmente embotado pela pessimista consciência de realidade: eu era uma adolescente mirrada, sem sorte pra conseguir trabalho, estudante noturna em escola periférica, a 'filha do lixeiro', cheia de irmãos menores. Ser escritora? Poeta? Faça-me rir, dona Eli. 

A vida passou, a poesia nunca. A falta de pretensão e a popularização dos meios digitais explicam a divulgação relativamente tardia da minha escrita, via ebook, depois via blog e depois, bem depois - e por insistência de amigos - via livro. Nunca achei que, num país de gente que mal tem o básico, a arte literária pudesse me valer mais do que me fazer a mim mesma. E embora hoje eu veja muito mais gente lendo/falando/ escrevendo poesia, não tenho certeza se isso mudou.

Mas hoje vejo minha poesia figurar como objeto de estudos de pós-graduação e conclusão de cursos de letras (que eu frustradamente não fiz). Vejo versos meus sendo fruto de questão de vestibular em duas instituições públicas do estado de Roraima, que eu amo tanto. E essas coisas me fazem voltar atrás... é impossível não observar com surpresa e gratidão que, naquele diário que eu chamava de 'meu bem', eu estava certa e errada. Sim, a poesia continua sendo só um jeito de me escrever e se tem gente que gosta é porque se vê no que escrevo e nesse movimento eu me vejo de volta, num exercício de humanidade. Onde eu estava errada? Eu tive sorte e não contava com isso. Admito, não sem uma ponta repreensível de orgulho: não era bobagem o meu desejo de um dia ver a minha escrita estudada. 



 

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Cólera dos deuses?

Eram uns olhos grandes,
uma boca grande, 
uma simpatia... 
Eram amigos comuns, era casa e bar e praça, água vinho cerveja cachaça, 
era choro e alegria... 
Era uma noite escura, a dança, o copo, a fumaça, era'studo e boemia. 
Eram livros e trabalhos, filmes, discos do caralho... era pura poesia. 

Foi assim que o terrorista invadiu o nosso peito, 
cheio de bomba o sujeito jurava que se explodia. 
Foram mãos e pés e línguas, saliva e choro e suor, 
foi entrega de cativas, foi loucura, 
é amor.

Era um bolero ou um samba? Ao vivo, na corda bamba, eu disfarçava e sorria. 
As pernas entrelaçadas sob a mesa na calçada, tu sabias, eu sabia.
Fosse em dupla, em bando, em trio, nada em nós era vazio, tudo tinha uma razão:
a verdade nos guiava, nossa pele nos guardava, fomos tema de canção.
Tu sagitário e eu câncer, um ariano, um romance e um judeu na contramão
a distância e o fogo amigo,
as lembranças, o perigo, 
as horas naquele chão... 
um bolo de chocolate, feito a cor da tua pele pras formigas da minha pia
e nós dois entrelaçados feito dois astros dourados na noite que se perdia.

tanto faz se dez ou vinte
quantos anos se passaram desde que te conheci?
eu nem sei o que já era, sei que tu, há muitas eras, já estavas bem aqui
dentro em mim, feito eu mesma, me doendo e me curando, como só eu sei fazer,
sei bem desse reencontro
desse amor que já vem pronto
com mil começos e fins
sei do destino marcado 
nos nossos nomes trocados:
tu martins e eu martins.  

(Feliz aniversário, Aguirre, cólera dos meus deuses. )

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Provocação

então vem maldita
pode chegar
vem assim toda cheia de si me maltratar
não são nem seis horas
e hoje é segunda, sabia senhora?
vem assim tripudiar sobre minha solidão
vem se fazendo de amiga
como se quisesse só me iluminar
exibindo na carne a sombra do seu amado
que nunca está em você colado
mas é raro quando de ti consegue se apartar
vem maldita me lembrar
que eu estou sozinha e esse céu largo
é todo seu
vem se vingar do tanto de foto que eu tirei
quando você, vermelha
viu a Terra devagar passar por ti
como uma loura na balada passa,
entre atrevida e folgada
provocando um casal...
pode vir, regente do meu mapa astral
joga teus raios brancos nessa minha pele
que eu só te enrosco num abraço daqueles
e te faço minha amante na noite que se inicia
veja a cor que me cobre e descobre
maldita
com quem foi que eu passei o dia?


quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Quedas da lua*

Estou aqui porque me obriga a vida
e os olhos reabrem apesar da ferida
da lua tantas vezes despencado
sem palavras, sou um poema mal acabado
e se o derradeiro verso ainda não foi dito
que venha mais praça, mais vida vadia que me abraça
mais cachaça, mais frio e calor e cansaço
e queda
tanto faz se a rima não arremeda
o que antes existiu e agora findou
como o dia que nasce,
voltará a noite
essa que eu cubro de amor
pra que me acoite
até que a poesia se faça completa
e eu morra e finalmente
seja estudado e amado,
considerado "poeta".

*Uma resposta para meu parceiro e comparsa, Roberto Mibielli.

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Do mal que nós fizemos*

Eram duas, a carreta passou por cima
 - mata esse filha da puta!
se aparecer por aqui vamos fazer justiça...
(na praça
as meninas brigam por macho)
 - sorri banguela agora, ladrão sem vergonha!
Eu deixava sangrar até morrer...
Vai apodrecer na cadeia, vagabunda!

E por ali
os porcos selvagens invadem
muito mais que prefeituras e casas do interior.


* Quase nunca explico os poemas, mas esse merece. É a respeito da página "Atrocidades em Roraima", que no Facebook, se pretende site de notícias/mídia. Uma página que asquerosamente comete crimes como plágio, não respeita as famílias de vítimas de acidentes, divulgando vídeos terríveis, espalha imundície e dor. Os versos são adaptações de comentários e manchetes. É terrível que se consuma tanto esse tipo de conteúdo pernicioso. Em minha opinião, algo assim deveria ser denunciado por quem de fato valoriza a vida, o bem comum, a civilidade, a justiça. 
O que mais vamos deixar invadir nossas cabeças?


terça-feira, 10 de novembro de 2015

O mal que você fez - ou carta para o "SD Quadros"

Estou aqui, olhando para o quadro de horror pintado por você, que  começou surpreendendo a família que se preparava, na segunda-feira, para mais um dia de trabalho...

Sabe, a menina que jaz agora num caixão ainda vive aqui na minha memória. As faces rubras no momento de uma brincadeira. A voz sumida, apagada por tanta timidez. O olhar carinhoso, o esforço por aprender. Também vive noutra imagem, quando nos encontrávamos antes de sete e meia da manhã no estacionamento da escola, ela no volante, deixando a mãe no trabalho. Vivia estudando e se especializando, cheia de planos de como fazer melhor o seu trabalho. E enchia a mãe e a mim, sua amiga, de orgulho: sim, nossas meninas cresceram. Ela, a mocinha, era mais um dos elos que me irmanava à sua mãe, já tão querida por mim, Me despedaça pensar que foi ao volante que ela viveu seu último momento...

E o pai dela, esposo da minha amiga? Um homem amoroso. Companheiro na acepção da palavra: gente que faz companhia, que apoia, que dá suporte. Companheiro desses que não se talham facilmente por aí. Ele tinha agora duas filhas encaminhadas. Uma formada e outra acabando de ingressar na universidade... Apoiava a esposa no estudo do doutorado... Você não sabe o que é isso. Com base na minha experiência pessoal, imagino os planos que ele tinha... filhas criadas, uma esposa linda, inteligente, amada... a vida finalmente mostrando os resultados de todos os anos de luta empreendida. Provavelmente iria se dedicar mais a si mesmo, cuidar da saúde, sendo fiel, como era, à sua fé e à sua esposa. Viver "só a dois" de novo, talvez. Ser feliz até o fim. Quem não o esperaria? Seu amor estava lá, nas ações pequenas, como, tão cedo, fechar o portão para a filha que saía para o trabalho. E foi assim que você o encontrou, não foi?

Outra coisa que você não deve saber, na sua juventude cheia de coisas por fazer, é o que significa ter ter duas filhas criadas. Duas filhas competentes, comprometidas, saudáveis e alegres que, apenas por existirem dessa forma, reforçam o amor que você sente por si mesmo, pois recordam a cada momento o quanto você foi capaz de renunciar para construir aquela beleza.

Você certamente não sabe o que é ter tido um companheiro nesse tipo de empreitada, enfrentando inúmeros obstáculos para chegar ali. Alguém escolhido na tenra idade e com quem se firmou um compromisso de cuidado mútuo, cumprido no decorrer cansativo de cada hora, com fé e sobretudo, com amor. Você certamente não sabe também o que é casar-se com uma mulher e ter com os filhos dela o cuidado amoroso de um pai. A palavra padrasto nem deveria ser usada nesse caso. Eu conheci um desses, bem de perto e a palavra que mais se adequa a quem faz isso numa sociedade tão machista e negativa é AMOR e não padrasto. Mas amor é algo que você provavelmente não sabe.

Você, tão jovem e tão cheio de coisas por fazer, provavelmente não sabe o que é ter uma irmã/irmão mais velhos, muito amados, que te servem como modelo. Não sabe da alegria de dividir a cama, a barraca no acampamento da igreja, os brinquedos, os jogos, os amigos, os álbuns de figuras. Não sabe o que é compartilhar os momentos de crescimento com os sonhos, os medos e as angústias que ele traz. Provavelmente você, tão jovem e tão cheio de coisas por fazer, não soube o que era compartilhar com alguém muito íntimo o amor e a gratidão pelo empenho de seus pais para que você se tornasse o que é. É isso, você provavelmente não sabe o que é a dádiva de ter, em casa, uma irmã que é também sua melhor amiga. Elas, as meninas da minha amiga, antes de ontem, tinham.

Desde ontem, quando você resolveu visitar aquela família de amigos e ao padrasto de um outro amigo, sinto que meu corpo ferido foi jogado num tanque de ácido. Respirar dói. Olhando seu sorriso bonito e sua juventude, suas postagens 'se sentindo tranquilo' nas redes sociais, sinto que você não tem noção alguma da extensão do mal que fez. Olho para você, para o tremendo quadro de horror que você construiu, para sua fuga, para seu posterior 'medo' e 'entrega'. Posso estar cega, mas não vejo nada que não tenha sido planejado. E me é familiar tudo isso: já vi inúmeras vezes no cinema, os psicopatas agem assim.

Hoje amanheci destroçada. Sem dormir, não acordei. Peço perdão aos meus leitores do blog, não há pretensão de poesia aqui hoje. Porque hoje sou só dor e desespero. Não é só comoção barata por três pessoas assassinadas, motivada pelo espetáculo da TV, que eu tanto desprezo. É o desespero de ver o ódio se espraiando, incontrolável, incontornável, atingindo cada vez mais as pessoas que eu amo. De ver o ácido me cobrindo e de estar perdendo, com tanta dor, a pouca lucidez que me sobra.

Como não me ferir quando tantas, como eu, são vitimizadas por violento desrespeito? Quando tantas mulheres como eu perdem a vida nas mãos de gente que foi gerada por outras tantas mulheres como eu? Quando tantos pensam justificar o injustificável, 'informando' que a tragédia "foi motivada" por ciúme?

Infelizmente, ao contrário do que ocorreu com a vida de Jannyele, Eliézio e Ernani, esse post e essa dor, por ora, ficarão sem fim.

sábado, 7 de novembro de 2015

Reescritos

Fotografia de Michal Macku. In: http://www.michal-macku.eu/

Palimpsesto é nossa história
Incômoda nossa antropofagia
Rótulas no chão
Embriagados de poesia
negamos os rótulos
rastreando com os poros
cada fluido
desse desejo bem resolvido

por segundos que duram séculos
simplesmente somos
 - sem metas nem diretrizes- 
isso que tanto assusta
nesse mundo desajustado:
absolutamente felizes.

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Silentes*.

Duas mulheres dançando no Moulin Rouge (Toulouse-Lautrec, 1892). Óleo sobre papelão, 80 x 93 cm. Galeria Nacional em Praga, República Tcheca.
Nada vai explicar
o gosto
dessa pele na pele
o ritmado encontro
nosso complexo paradoxo
do sou não sou
mas quero
mais quero
mais quero...

toca o bolero
esquecemos os chavões
e unidos pelo som, o suor,
o sorriso
aceitamos que o desejo
é conciso
e não é preciso
pedir explicações.

*Para Aguirre.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Quase cinco anos

move-se na cegueira branca
atordoado e dividido entre as faces
desse monstro

(o dia
não se suporta
e as tripas denunciam humanidade
afogada na presença de tamanha ausência)

lava o rosto, as mãos, o resto
e leva certa a crueza torta
que pior que morrer
é assim
de saudade andar morta.

terça-feira, 29 de setembro de 2015

De pôr em perspectiva.














Vai ver que é isso
dúvida lapidada e envolta por uma certeza única
da qual não se escapa.
É um tapa, uma festa imprecisa e bela
na qual você não se lembra de ter entrado
porque enfim não entrou -
alguém te pôs

e depois
tens todo o tempo pra esquecer dos fatos do patético início:
ser alguém... vai ver que é isso,
uma sucessão de atos
de desesperada auto-afirmação

então
um evento ordinário te cansa do afogamento diário
e já não iludem como deveriam
os sons gentis e as luzes refletidas...
a vida
vai ver que é mesmo só isso que a alivia:
a lembrança dura
da antiga carne, antes querida,
sob a terra, desfeita ou ressequida;
a certeza de uns resistentes ossos
e a perspectiva do ócio
de futuramente
fazer-lhes companhia.



domingo, 20 de setembro de 2015

Domingo de sol

me abono com abandono
me desleixo, me deixo.

é tudo chama e fumaça
tudo fede solidão e cansaço

embora ainda haja mosquitos impiedosos
que me passeiam
na lembrança da carne.



quinta-feira, 17 de setembro de 2015

 Pes(o)soa de Carne e Osso” - de Santiago Cão. Foto de Juan Montelpare. 
Disponível em http://arteseanp.blogspot.com.br/2012/06/conversando-sobre-arte-entrevistado.html.

A carne, ainda viva,
pulsa pedindo piedade
acumulam-se sob a pele
dores, quilos, raivas, medos
no enredo
pegadas de sangue
postes, putas, proezas perenes
paisagens pregadas na retina
trabalho, flores, gatos, horas, dias...
nada,
ninguém é refúgio

no escuro de dentro
que o sol não respeita
a carne grita crua
que o deserto
sou eu.

sábado, 12 de setembro de 2015

Brincadeira




















Era arrastada pela criança pelos cantos da casa
jogada pra todo lado
as cores de origem perderam a vida
encardidas...
"essa sujeira é a memória
de todas as brincadeiras"
- pensou-

sentou-se na calçada em frente à praça
a boneca no colo, quase caída em desgraça
e pareceria calma,
não fosse o susto
estampado na cara
apertando-lhe o peito.

trouxe consigo pano, agulha e linha:
(um comprimido aqui,
uma fotografia ali,
um abraço lá)

seria preciso esquecer do tempo
por isso lavaria a memória com muita poesia
e em breve - era a esperança que tinha,
surgiria de suas próprias mãos
a boneca reformada:
já tão velha
e tão novinha.



terça-feira, 8 de setembro de 2015

Ônus do onírico

Era pesada a bagagem e íngreme a estrada
precisou descansar
fechou os olhos e quando abriu
era mistério
por onde seguiram todos?

completamente só.

sabia intimamente que não deveria mais estar ali
voltar atrás não era opção 
seguiu puxando atrás a maleta azul
a um estranho pediu ajuda, 
e colheu seu sorriso frio 
como a chuva que se aproximava. 

o coração acelerava, buscando, em vão
chegar ao outro lado da estação.

através de grades altas
viu os trilhos transformados em leito de rio
e as margens lentamente se desfazendo em lama
acima, na colina
viu colunas fúnebres muito altas e coloridas
dispostas como num tabuleiro de xadrez
e não parou um só instante
de caminhar freneticamente pelo piso
que estreito
negava-se progressivamente aos passos.

Desceu e subiu por escadarias enferrujadas
sem tirar os olhos do outro lado
já não tinha bagagem 
embora nas mãos descobrisse umas moedas
e nada, nada, nada que tentasse
lhe permitia atravessar
para onde sentia que deveria estar.

Quando a desorientação pareceu completa
e não era mais nada, nem peregrina nem poeta
pereceu para o pesadelo
e ingressou, 
suspensa e triste
noutro dia.

Cemitério guatemalteco
 http://www.panoramio.com/photo/349358








segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Consciência e descontrole

antes fosse a consciência do descontrole da vida
essa ânsia assim sentida como uma lança contra o peito
mas não é desse jeito...
para mim, que gosto de gatos
nunca foi mistério
que as nuvens não despencam porque quero
que as pessoas vem e vão, sozinhas
cada uma por suas próprias razões comezinhas
e que um jardim abandonado será como um cemitério.

sonhos mudam
tão rapidamente quanto a paisagem celeste
a flor de ontem hoje é só fibra ressecada
a dor de hoje em breve provocará risada
pois tudo é finito, o amor e a peste

entre tanto, o hoje:
ainda posso erguer ou baixar os braços
oferecer ou negar abraços
correr, gritar, ouvir, calar
mas simplesmente não quero .

O desejo,
tantas vezes comparado com a matéria em brasa
é de fato incontrolável
e quando desaparece
é que mais me arrasa!

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Louboutin

Um salto, claro,
para um momento raro:
deu a si o presente tão caro
e, tomada de ânsia e perdão,
pisou com os dentes e engoliu
o próprio coração.



segunda-feira, 24 de agosto de 2015

no fim não sabia
por quanto tempo estivera
na estrada vermelha
cobrindo-se de sol e poeira.

descobriu-se caído
aprisionado
pés rasgados sobre o pedregulho,
desgrenhado, faminto...
completamente vazio
de fé ou orgulho.

entretecido de couro e barro
mirou-se lentamente
a pele vincada como os sulcos no chão
os olhos noturnos em brasa
nenhuma brisa no pulmão

intentou erguer-se
mas com a rigidez de mil laços
as curvas da estrada impuseram-se
imperiosas
à sua coluna, suas pernas, seus braços.

e não há nada
que dele se revele
pois ali, sozinho
de caminhante
tornou-se caminho.



Sobre uma pergunta feita à Nina.*



Nem precisa responder
que eu entendo,
cada nota
cada lágrima
essa sensação
de que era completa
e infinda
a escravidão.

Entendo o cansaço
e a irritação
entendo inclusive a fuga
para a Libéria
sem filha, sem perdão
numa sobrevida
que certamente
poucos entenderão.

O que se fez das meninas?
Fomos de fato felizes,
o quê nos aconteceu, Miss Nina?

Desculpe, miss,
mas eu minto...
não entendo não!
eu apenas sinto
em cada poro,
desse corpo por horas prostrado no chão
completamente minhas
as dores da sua canção.

"*What happened, miss Simone?"

terça-feira, 18 de agosto de 2015

Guerra e paz

Quando a noite se agiganta e nina o mundo
Com silêncio escuro espesso e calma e paz
Eis que o monstro manifesta seu profundo
Interesse em consumir tudo e o que mais:

Se faz lava e lava o rosto e o travesseiro
Se faz neve e cobre tudo ao meu redor
Cala o sono, a cor, o verbo, o amor inteiro
Me sufoca, estripa e grita, vencedor.

Todo dia o sol vem ver se teve termo
Essa luta cansativa e renovada
Ilumina cada canto desse ermo
Me revela a carne viva e destroçada.

O relógio se atrasou à minha espera
Fico vendo seu bater descompassado
Ele assiste e eu alimento a besta fera
Que inerme e monstruosa vive ao lado...

A enveneno pra recuperar a fome
E com ela, nos abismos me atiro
Ela ataca tudo aquilo que tem nome
E é por isso que a combato, ataco, firo.

Eu não sei o que será, se haverá trégua
Nessa luta estendida noite e dia
Meu descanso é transformar-me em rara égua
E, com asas, trotar sobre a poesia.


segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Do Birdman em mim.

Olha
as ervas daninhas tomam quase tudo
a nova cova da cachorra velha
se pronuncia sob a aceroleira
você lança seus crivos
as roupas jogadas sobre a cama
a secura das folhas da roseira
há essa poeira espessa sobre os livros
uma das samambaias está mais linda do que nunca
e nenhuma mini-margarida se anuncia desabrochada.

Da casa não paga
distante, sobre a serra
notícias de um gato morto
da madeira empesteada.

O sol volta, claro,
ignorando a tudo
o mundo segue seu curso
como você sabe que é e que será.

Pode verter esse mar dos olhos
pode liberar o mar vermelho dos pulsos
podes tudo, "inclusive nada"
simplesmente esconder-se no quarto escuro
ao som do ventilador que move o ar:
o ar
seguirá seu curso,
impassível.

E embora e porquê não sinta nada
você sabe profundamente
que tudo, tudo, tudo
é desprovido de sentido
e que de nada adianta
ficar repassando esse texto
porque a peça deveria ser outra
e antes da estreia fatal
não há nem haverá expectador
além de você
para esse ensaio
de ausência.



sábado, 18 de julho de 2015

"Quero me encontrar mas não sei onde estou..." 
 "Acho que entendo o que você quis me dizer, mas existem outras coisas, consegui meu equilíbrio cortejando a insanidade..."
"... sempre existe uma luz, mas não me diga isso!"

Ando nessa noite à tua procura
em promessas e jejum
busco tua luz que tudo incendeia e cura
tua força que me conduz certeira
pra lugar nenhum.

Resfria o couro no aço
derrama-se
vermelha cobrindo esse gelo
escorre lentamente as asas
penetra o esgotamento dessa ausência
e volta!

Pisa devagar nessas brasas
afere
o calor da alma
bate bate bate bate
lentamente acende uma fogueira
faz-se tocha a consumir-se sob o sol.

Ando nessa noite à tua procura
com tudo, tudo, tudo o que sou
meu sexo úmido minha poesia tosca
e a droga da vida.

Volta.

domingo, 28 de junho de 2015

Há tarefas que se misturam
na queda da tarde de domingo
o bem-te-vi segue roubando a ração das cachorras
o céu está azul e a pilha de trabalhos se eleva ao meu lado
e eu penso que tanto azul não cabe em mim meu deus!
e essa terra toda e essas flores todas
esse domingo inteiro que me implode
nesse olhar pra dentro que impávido e certeiro
se despeja destruindo cada gota de esperança
sigo
dando por dissecado,
cada passo.

Não se restauram em mim os tendões partidos
algo perdido longe longe longe...
meu deus sabe onde, meu deus!?

E não foi vinho nem cachaça
não foi lua nem desgraça
não foi rua acesa, nem ferida aberta
não há explicação pra essa lágrima presa
pra essa alma completamente deserta.

Morre o domingo lentamente
e é esse puro azul quem me arrasa.

sexta-feira, 29 de maio de 2015

Carta pra mim²

Completa, com Flávia, durante o Sarau da Máfia do Verso,
Sesc Amazônia das Artes
















não

nem "otária" nem "bestinha"
nada disso, não.

- isso é coisa de gente comezinha
coisa de gente tão gentinha...
só se afaste!

olha a haste erguida
da generosidade
empenho, entrega
coisa de gente de verdade
não te nega
é coisa tua.

esquece a rede, a rua,
busca no recôndito do teu peito
nas entranhas da memória
nas nesgas cavadas em tua pele pelo tempo
no fundo dos olhos fechados

porque é ali que arde,
selvagem e inquieta
a arte de ser você
completa.


sexta-feira, 22 de maio de 2015

No médico.

Te explico
eu mesma diagnostico
essas dores
que ando sentindo:

Ultimamente,
entre o céu e o nada
nada me anda
e eu parada
ando verde,
presa,
incomunicada...

muito
muito só.

terça-feira, 19 de maio de 2015

quando você não vier
farei festa com o que tiver
se for de comer eu como
se for de beber eu bebo
se for de dançar eu danço
não vou me acanhar amor
quando você não vier
ainda não farei silêncio
se for de gritar eu grito
e se preciso eu sussurro
se for de afagar, afago
se for de lutar esmurro
vento, tempo, luz, calor
livro, TV, bola, balé
qualquer coisa vai valer
quando você não vier

domingo, 17 de maio de 2015

Tem tatu na linha

tão tu e eu
esse tanto de tititi
tu tá?
eu tô
tu teu e eu
tua tua tua
tu tá?
tudo tanto...
tantãs tocando no fundo
tipo, tamo aí
eu e tu...

taria tudo tão no tom
quando eu dissesse seu nome
mas só ouço tututu
se chamo seu telefone.

sexta-feira, 15 de maio de 2015

Fênix

Então que viver deve ser mesmo
esse ir-se desesperançando lentamente rumo ao nada
em fiapos.

Eu, que não nado,
não nasci a fórceps
me afobei desde sempre
e sigo assim mesmo
enfaíscada
faço festa nas bordas
farreio com as farpas da vida

francamente
fiando,
afiada.

Afogada em frases refeitas
ora feliz, fatal, fortaleza
ora fúnebre, à falência,
fodida
sigo


até que, por fúria ou febre
fraqueza ou frio
funesto fato qualquer
à força
uma hora me finalize.

quinta-feira, 30 de abril de 2015

Ausente

Quando eu era criança sentia falta demais da minha mãe quando ela ia na maternidade buscar mais um irmão. E foram muitos, alguns nem vieram.

Um dia os sustos tomaram forma de provas de matemática que era aquela linguagem de gente que sai do recôndito da terra e nunca, em nenhuma geração passada, havia se voltado pra mim.Jamais comunicamos, eu e ela e nos assombramos mutuamente por anos que pareceram eras. 

Eu me rebulicei, tronxando as coisas que não cabiam até caber, fui extrusando o que era e foi estranho pertencer ao grupo e não ser ninguém. Estranho ser alguém no fio da faca, "aquela deusa?" "aquela vaca?", não foi tranquilo. Suave, não. 

ah como doem 
essas flores murchas
essas rugas toscas
esse tanto atrás

Não sei como nem porque vieram esses fantasmas habitar o paço e a sala e o jardim. Nem sei se sempre estiveram pela casa, à espera de um suspiro que me sacasse o que de mais perverso havia no fundo. Me alicerço no ar, não sei como nem porque se instalaram assim. Os fantasmas. Mesclam silêncios e uivos, entrecortam o eco do peito sob essa chuva incendiária que retorce e esmiuça e escancara a carne desgovernando e desavergonhando ideia. Eles veem e revolvem a coisa toda. E vêm de fora, e vêm de dentro. E ficam.   

como doem 
em caminhos tantos
derramados prantos
na ausência da paz.



segunda-feira, 20 de abril de 2015

Prisioneiro

tristemente
transitava feito um traste
coberto de trapos
trôpego

cravava os dedos e as unhas
na carne da terra
como quisesse salvar-se da queda
e estava no chão

depois seca os olhos
engole a saliva
ajeita gravata e bolsa
e sai falsamente altivo
abraçado ao ofício que lhe mata

- o que o desespera
é entrever que em si não há cura
para o imenso medo da quimera.




sábado, 11 de abril de 2015

Era uma enxurrada descendo a ladeira. E eu uma menina ilhada na calçada. Deixei que me molhasse e assim, quando dei por mim, estava casada: Para sempre. 
Ela é ciumenta. Fica amuada quando não a procuro, quer que eu a beije toda, todo dia, virgem Maria! como é dengosa. E não me dá prosa sempre que eu quero... Hoje não veio. Com uma lua dessas? Acerto em cheio que está vagando, fresca e vadia, noutras paragens. 
Ela é meu guia de viagens. Quem me consola quando angustia. Minha esposa. Poesia.

domingo, 22 de março de 2015

frases feitas, fases fixas

para abrigar os homens
brancos pretos amarelos lilases
trago nas mangas
emoções capazes
de me impulsionar a marte

por vezes
mostra-se em mim
a vênus maestra
ministrando doses
de pequena morte

para ser feliz
mantenho o coração deserto
a imensa coleção de ossos
e o portão aberto.

quarta-feira, 4 de março de 2015

"coração bobo coração bola coração balão coração são joão, a gente se ilude..."


me cobre
como nuvem
me sopra
como vento
me afaga feito rio
me alarga e me estreita
me colore e me desbota
me ama
e me mata
quando vai
e quando volta.


sábado, 21 de fevereiro de 2015

falamos de sua volta
e eu volto a ter seis anos:
cabelos trançados
e doces planos
de brincar de casinha

que alegria que é
ter uma amiguinha
pra tomar chá
de mentirinha
em xicrinha
rosa de plástico
cuidar dos nossos bonecos
e fazer do tempo um elástico
que não pára de esticar...

não vejo a hora de você voltar
pra gente fazer projetos
pra gente viajar junto
pra gente beber bem muito
pra gente malhar e rir
pra gente inventar assunto
pra gente comer pipoca
vendo filme de chorar.

falamos de sua volta
e eu fico assim: menininha
anseio sua chegada
doce amada amiga minha.


quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Quando em sonho
pra mim te trago
e me surpreendo
com teu olhar que me lia
sem medo ou engano
meus olhos, vertendo dor
se abrem invadidos pela luz que já toma o quarto.

Sem ar
me afogo na luz e na lembrança
que me anula, me reenluta
e é uma solidão absoluta
que em cada poro se escancara.

E me me violenta tanto esse processo
que por um instante
até creio e confesso:
não doeria nada
se, como a tua,
minha vida também findasse.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Choque

Venta
e a gota ínfima
tremula sobre a folha
que torra sob o sol...

é assim
de fragilidade bruta
a existência que nos ilude
infinita de possibilidade e brilho.

Ela cai
num átimo some no chão:
nem sinal.

e não há silêncio:
é um zumbido louco que me ataca
cega, ensurdece, aniquila
faz chorar...
sempre choca
a lembrança incômoda de que o fim
sim,
pode estar em qualquer lugar.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Impossível silêncio

Ah, se em algum canto brilhasse
Aquela estrela acesa
E o olhar congelado entre o caçador e presa
fosse um destino manifesto
pondo um instante suspenso no ar
tão denso e intenso
que se pudesse tocar...

Desatando nós, reinaugurava o colchão
Pintava campos de me perder
Bebia ondas de me afogar
Frágil e sem mágoas, fácil,feliz
embalada na rede da tua voz
simplesmente voltava a te amar.

Pudesse eu, e eu juro
perdia de novo a respiração
botava de novo o coração na boca
deixava a suavidade do alto do muro
me estatelava 
me punha no chão...

Se eu pudesse reinventar
Essa música que soube de cor
Seu eu sentisse com surpresa
Na xícara, o gosto do resto...

Mas na ocasião
esse tresloucado gesto,
eu não posso não.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Olha
há ali mãos engrossadas pela terra
braços e pernas marcados
por limoeiros e roseiras

há ali uma respiração lenta
alimentando um corpo
de quem já pariu quem devia
de quem já fez quitutes e festas
de quem já regeu uma orquestra
e hoje habita uma casa vazia.

olha
como foi que se instalou ali
no peito asfaltado
essa agricultora
rosto por sol vincado
cabelo que não denuncia corte
sob essas roupas que, novas, parecem rotas
esperando viva,
silenciosa e resignada
a morte?

Vasculha as palavras perdidas
na colcha dos poemas
remexe as memórias, revolta a água dos temas
cria problemas imaginários,
vai a lugares terríveis
encontrar monstros humanos...
Colhe a adaga guardada
a bomba, o frasco de veneno
é hora
presenteia essa senhora
com o suspiro último.

ama, como se não houvesse danos
ama, como eras capaz há anos...
por você e pelos seus:
mata-a
e volta a viver,
pelo amor de deus.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

A pele, casca de humano
reclama do ar que não se move
de modo insano.

Tuas palavras são prole incerta
estendida pelo campo
ecoando um grito
que em silêncio,
ainda me comove:

Suas viagens que já não são vertigem.

E por mais que a gente não aprove
e troque sorrisos
e minta e finja
um intacto encanto,
a verdade que nos socorre
é que todo dia, tudo morre...
nós só não sabemos
quanto.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

E se eu te deixasse
e se eu desistisse
e se eu simplesmente
me calasse e você sumisse?

Tonta de silêncios
dissimulo a ira
que você me planta
nessa vã latência:
por mais que me fira
eu me nego, cega,
a mirar os gritos
dessa tua ausência.