"Uma atividade voluntária exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e alegria e de uma consciência de ser diferente de vida cotidiana." (Huizinga, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 5ed. Saão Paulo: Perspectiva, 2007)
De todos os brinquedos que a vida me deu, o que mais me cativou foi o de jogar com as palavras. O jogo se faz completo quando escrevo e alguém replica, quando replico o que escrevem... É na intenção de reunir jogadores e assistência, que meu blog é feito.



sábado, 20 de dezembro de 2014

Hacker

Busco uma palavra
que te toque a face
mova uns fios de tua franja
e se deposite cega na firmeza dos teus lábios.

Uma palavra vírus que
estando em ti depositada
tome-lhe completamente os sentidos
deixando-lhe em febre que não se aplaca.

Quero uma palavra para lamber-te os cílios
escalavrar o mais profundo do teu desejo
e trazer à flor da neve a fúria guardada...

Busco a palavra que te destrava
para inconsequente, trazer-te ao mundo
em cada gota da tua lava.


quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Deus me livre

Deus me livre da calamidade
dessa vida sem vontade
vivida assim, na metade.

Deus me livre desse dia
de agonia preguiçosa que se espalha
fazendo tralha de tudo o que eu queria

Deus me livre dessa falta
de desejo
de tanto tanto faz
e desapego e silêncio
que não são paz.

Deus me livre
da indiferença diante da noite sem abraço nem beijo
dessa inconsciência de si
desse olhar colado no asfalto
embaçado num choro tão alto
que meus ouvidos não querem me ouvir...

Deus me livre
de ser livre de querer
porque o viver se perde assim.

Hoje eu peço
especialmente
que Deus
me livre de mim.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Lei da vida

O ódio escorre e se espalha
suja o chão onde se pisa
obstrui o caminho
de imprecisa navalha.

 - ninguém se engane,
tudo o que vive
falha.

não entendo o espetáculo
não compreender o horror
seria mesmo uma sorte?
fica-me a questão não respondida
o que foi, que de vencida
te feriu tão de morte
a frágil humanidade?

um sábio amigo ensinou-me:
não tem piedade, a vida
e se é só dor que se semeia
só a dor será colhida.



domingo, 16 de novembro de 2014

Provocada

Me senti no limite de
Uma dúvida imensa:
Seria um convite?
A esperança intensa...

Tensa, à noite arde uma cama vazia
Numa serenata que não se ouvia
aquecido, o peito é lembrança lenta
de um beijo morno em manhã raiada.

Aquecida a vida
Se espreguiça e chora
seria um convite ou não seria nada?
Dolorida lembro do que foi outrora
Temerosa espero,
O que virá agora?

Sinto que de dentro
Nunca me saíste
Sinto meu limite
Se desrefazendo
E antes de deixar que me nasça um palpite
Ensaio esse riso que brota doendo

Na pergunta cega: seria um convite?

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Boneca que é gente*

te redeclaras
e em cada poro
se me escancara
um vulcão:

esse desejo de impor beijo e riso
a cada cara na rua...

dançando ladeira abaixo,
num sentimento preciso
de ser história e memória
faço-me parte do povo...

(seu amor redeclarado
tem cheiro de livro novo.)

*Para Talitha, minha Tatá.

domingo, 26 de outubro de 2014

Voltar a ser um

Eu já conheço
esse caminho pantanoso
essa escuridão por dentro
cada passo nessa senda.

Eu já conheço
gota a gota esse veneno
toda a dor desse destino
em detalhe todo o plano.

Eu já conheço
e por isso não me nego
se é pra chorar, me entrego
depois vem calmaria.

E algum dia
num momento mais florido
felizmente, simplesmente, 
não será mais dolorido
olhar pro que foi a gente.




quarta-feira, 22 de outubro de 2014

22 de outubro

São 1460 dias
sem sua respiração
sem sua voz.

1460 dias
da ausência mais presente
mais contundente
mais feroz.

1460 dias
que provam sua certidão:
a vida é feita no dia a dia
e cada um tem sua própria
e interna
razão.

Eu fiquei com filhas, casa
e uma multidão de dias a mais
povoados da tua memória
e dessa presença/ausência
que a um tempo
nos atormenta e enche de paz.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

ouve?
é só o vento...
hoje, amiga
não te gritarei aos quatro cantos
não sussurrarei você noutros ouvidos
egoísta, a quero assim, em bruto estado
e do meu jeito
poesia da palavra calada
sob o som do ar
e o batuque involuntário no meu peito.

terça-feira, 30 de setembro de 2014

Outubro Dói.

O calor sufocante,
a proximidade da eleição,
o carro novamente no mecânico,
o corpo à beira da exaustão...

Tudo machuca quando se aproxima outubro
e sua ausência aniversaria 
se impondo a tudo
invadindo tudo
inundando sonhos e travesseiros.

Imagino tua censura sorridente
e como me envergonha
não calar no peito um choro sentido
dói me ver assim
dividida como quem sente e não sente.

Perdoa,
porque me é fonte de perene surpresa,
porque é um misto absurdo 
de alegria e tristeza,
e razão desse sofrer incontido
eu tê-lo visto partir
e mesmo assim, ter sobrevivido.


segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Perdão.

Feito criança,
cara suja, nariz escorrendo
os braços abertos terminando
em mãos imundas
me pedes abraço
carinho,
abrigo,
mais espaço.

Tomada por intenso mormaço
ignoro o quanto me infesta
esse apreço.

Limpo o coração
- Nalgum lugar do baço
interno o rancor -
e recebo-te como benção:
intensa de amor.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Informe

Que saiba que não eram estes
os planos
mas que sob os panos
esse pedaço de carne
chamado corpo
que juntos usamos
há tempos atrás
por causa de uns danos
à minha cabeça
não mais me pertence:
é seu, meu rapaz.

sábado, 13 de setembro de 2014

Noticiário de sábado

Choveu
longe daqui
o sangue cobriu o fio da adaga
e o fogo lambeu o corpo
de um septagenário.

Era só um homem
trabalhador humanitário
e era só um homem
pai de outro homem,
homens sós, reduzidos a nada
cabeças sob o sol e o céu azul
sob as lentes da loucura
por ódio e ganância
tombadas.

Enquanto isso,
noutro lugar, inclusive aqui
mulheres tomam a frente dos bandidos
que acabam de pedir pra sair.

Cobertos de horror
não são vermelhos,
e pesam como chumbo
os minutos desse dia.

Eu bem queria não ter visto
e é fatal
que a pergunta fique parecendo um cisto:
de que me vale
essa aurora boreal?

sábado, 6 de setembro de 2014

41 + 17 ou

DO QUE UM PLANO DE CAPACITAÇÃO PROVOCOU EM MIM

Já passei de meio-dia
ainda vejo o sol alto, sinto sua energia
ainda vejo sombras projetadas para baixo
e caminhos iluminados em diversas direções.

Mas já passei de meio-dia
logo serão três e quatro e seis e meia
como foi desde as zero hora
rápido demais.

Penso em quem partiu às duas
em quem não teve como plantar-se
feito memória.
Eu não
eu história já,
passando de meio-dia.

Juventude e potência, do devir destemidas
comprar casa, ter filho, fazer doutorado
todas essas coisas que ocupam quem está ao lado
mas deveras não tocam meu coração sob o sol.

De alguns caminhos que brilham
à minha frente, eu pergunto:
será que dá tempo de eu ir junto?

É dessa angústia que parece doer mas não dói
e do interesse de registrar uma aguda certeza
que se fez, de suavidade e aspereza
esse poema:
se um meteoro esconder o sol
e se fizer noite antes do esperado anoitecer
essa vida tão sentida e ressentida
já terá valido a pena.


quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Uma nuvem rara*

O sol se esvaindo em raios
pelo Malecón Habanero
o vento cortando os ossos
no morro da Agronômica
é até irônica a memória
da pele envolvida
em abraços tão doces e sãos.

Retinas repletas do concreto
coberto de arte
e pés que recordam
areias brancas cobertas de águas claras
por toda a parte.

Por dentro o rum e o tabaco, a lagosta e o camarão
o sushi e a caipikiwi,
fumo do bom,
vinho e carinho,
filhos de amigos e irmãos.

Nesses dias em que me doo
e em que a mim se doam
tantos e tão bons
sinto, furiosa e a muitas mãos
a vida construída

Olho pra trás
e agradeço imensamente que me afague,
tão lenta e poderosamente
essa nuvem que só de amor me recobre.

*Para Jam, Aldenora, Tuco, Edu, Heitor, Cris e Thálion, que me cobriram de amor, essa bênção tão rara.  



segunda-feira, 21 de julho de 2014

Prece a quatro mãos*

Fotografia: JJVilela.

Único templo possível:
Nosso corpo.
A ele todos os dízimos,
todas as oferendas.
Dele
todos os cânticos e todos os altares.
Para ele todas as preces
porque é nele que se manifestam
todos os milagres.

E assim seja.


*Parceria com o querido Devair Fiorotti

domingo, 20 de julho de 2014

Boneca de pano

caminha
e pela estrada
em cada pedra escarpada
em cada galho seco
em cada espinho longo
deixa fiapos de si

não teme o fim
e sabe
que seguir ferida é o preço
para estar assim
embonecada,
sempre mais leve 
e despojada.

sexta-feira, 11 de julho de 2014

Tristeza não tem fim...*



Quisera eu ter coragem
e poder
para superar sozinha
meu problema comezinho
dos que não sabem ler.
Quisera ter coragem
e poder ainda mais
para abrigar às crianças destroçadas
por bombas
e por pais e mães desaparecidos
nas barricadas policiais.
Quisera eu ter uma palavra de conforto
mas ensino, amor, cuidado, alento,
esperança, fé, ternura, tempo
interesse genuíno, gentileza, compaixão
são só palavras
quando o mundo todo ao redor diz não
e se afunda em trevas
num caos miserável.

Em silêncio, me esvaio
para um sono profundo e culpado
sob o lençol cheirando a lavado
e ouvindo a chuva cair lá do céu.

*para as crianças palestinas, os filhos de Claudia e Amarildo e Beth.

terça-feira, 1 de julho de 2014

Metamorfose ambulante*

A doçura furiosa de quem
tem todo tempo
toda certeza
toda vontade
toda esperança
e é todo paixão.

De quem acaba de deixar de ser criança
mas não se limita
a ser algo pronto
de quem tem a exata consciência
de ser algo em formação.

Por que é que isso passa, meu Deus?
Sinto falta da maturidade adolescente
pois me ferem as certezas indecentes
de quem crê já estar pronto sem morrer!


porque eu também prefiro ser.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Novas bandeiras

Totalmente tato
atrela a atleta à turista
com força corre e viaja
trem!

Então atarefa-se de afagar trilhos
traduz peles
trafega céus que não são seus
transpõe as fronteiras do sentido.

Atrevida,
sem olhos nem ouvidos,
entoca-se,
toca-se.

Quando tarda
e se termina
fugaz e felina
a fêmea autofágica
já não se agita:
espalha-se no ar
em essência,
feminina,
e tremula suave sob o sopro das ruas
feito flâmula.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Banquete

Glutonaria:
e foi saliva
a iguaria.

Autofagia: nossa carne,
e o desejo se sacia.

Madrugada
sem dor ou planos
nos servimos

e devoro-te
e devoras-me:
em detalhes nos deciframos.

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Suspeitas*

Eu, por mim. 




















Meu eu sujo
não rejeito:
é trajeto desajustado
é jogo imperfeito.

Meu eu de mim sujo
é fruto do mundo
introjetado
em meu peito.

Não me parece abjeto
ser objeto
e eu suspeito
que tanta face
e tanto,
e mais,
é o que me apraz.

Entretanto
algo me espeta:
poderia o limbo
do eu dejeto
doado na poesia gorjeta
- ainda que lindo-
ser lido como o eu sujeito?

*poema inspirado na defesa da dissertação de Antônio Hilário, que analisou, entre outros "sujeitos", a mim. 

terça-feira, 10 de junho de 2014

Madonas*

Madonas - Elimacuxi - maio/2014

















Ave Madona ribeirinha
filhote no seio pendurado
sob a proteção de seu seio e sombrinha!

Ave seu leite amazônico
seiva de vida que serve ao acaso
filhos que brotam de buchos vazios.

Ave mães d'água em sua face soturna
Ave Marias cheias de mágoa
sob o sol de Tefé na travessia diurna.

Ave Madona ribeirinha
escura pele que alimenta os brutos
ventre expropriado em que se cozinha
a 'mãe pátria' e seus benditos frutos.


*a todas nós, expropriadas pela 'pátria mãe' de nossos corpos e frutos.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Carlos

"A agressiva reação é inaceitável falta de educação!"
Sentenciou a escola.


Então deram ritalina pro menino albino
e ordenaram à mãe que ela o controlasse
que ela o contivesse, não importava
o quanto isso custasse.

Para ele não deram bola
e o suspenderiam todas as vezes
que ele se irritasse com o marasmo da escola.

A mãe, Pietá periférica
sem um Miguel Ângelus pra lhe retratar
lamenta que, dopado
o menino albino
em seu olhar de menino albino com onze anos
não denuncie os mesmos sonhos e vontades.

E do alto de suas altas habilidades
vi um menino indefeso
diante da intensa capacidade da grana
carregando de si o peso
vítima da imensa 
imbecilidade humana.


domingo, 11 de maio de 2014

Nesse dia...*

estende-se silenciosa
e viva
encravando-se na terra
a despeito das pedras no caminho
forte raiz

no alto
três galhos florescem
estirando-se para o céu
como se de tudo soubessem

e eu 
em meio às quatro
me sinto de fato
um tronco feliz.  

*para Wanda, Rebeca, Clarisse e Helena.

terça-feira, 6 de maio de 2014

Despreza os altares
para si construídos.

Corta o sólido dos ares
feito um bólido,
descampa o nada
e nada em queda: 
livre.

Completa
mergulha no azul.

E aos pedaços
avermelha o mundo
com seus passos.

sábado, 3 de maio de 2014

Em minha defesa*

foi ou não por distração?
ignorei a cabrocha e violão,
dediquei meu pensamento
para as estrelas do mar...
que mais ordenas poeta
para assim me condenar?

triste é o amor que não se doa
guardado no peito, feito infiltração
age como a maresia
cumprindo no dia a dia
seu trabalho de erosão.

espalham-se por aí
amores doentes de vingança
que gritam, choram, esperneiam
crianças mimadas
fingem querer
sem querer mais nada.

na ruína de meu castro
finco da paixão o mastro
com todo ardor que me apraz:
assim eu mantenho a cor
do tanto porque me dano,
se não me engano já te disse
o transborde do meu amar
é o meu plano de paz.

- eu pisava os astros distraída?
que seja, siga-se a vida
andando faço o caminho
esteja a carne maturada
assim como o desejo,
o queijo
e bom vinho.

*Para Roberto Mibielli

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Mas já é maio...

Abriu-se em mim uma vaga
e um espaço de silêncio
abriu-se o vão do desprezo
abriu-se a visão do nada
abril, não partes ileso:
abriu-me pr'outra jornada.

Eu vejo a corda esticada
forca do abril que me cala
no abrupto fim de um brado.

De saudade já me cubro
abrigo o abraço não dado
na memória de um outubro.

terça-feira, 29 de abril de 2014

Carta ao poeta

Caminhando pela terra
em que te hasteaste pela prima vez
nada vi que pudesse
te fazer mais solar,
não que o sol se negasse -
ali estava, vespertino
colado ao azul do céu
acalmando formigas afogadas
pelo transborde matutino dos canais
depois da chuvarada.

Mas eram de um cinza impiedoso
os prédios, os becos, os murais
não há mais sertão na Caxangá
mas ônibus urbanos
cheios de gente sem urbanidade
gente que não se vê nem se fala
vi meninos e meninas
sua pele que exala convites
contraditos nos olhos perdidos e bocas fechadas.
Não vi crianças
revi, querido, com tristeza,
o autismo da São Paulo da minha infância.

As ruas do teu lugar tem o mesmo nome
a cidade tem o mesmo nome
mas em nada pude ver a Recife
a verdadeira Pasárgada
onde um dia Clarice
imaginou-se abraçada
às Reinações de Narizinho:
era mesmo de felicidade clandestina
a Recife da minha memória.

Talvez fora sempre isso,
e eu, despreparada
caí diante do anti-amar que ora banha o Hell cife,
revolto mar que me inunda ainda agora
e me afaga o coração em desalinho
com suas ondas de medo
e com seus dedos de espinho.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Paixão-Ator-Menta*

por desejo eu chovo
tempestadeio
trovejo, relampeio
e caio:

peço socorro alusivo
em cena não rara:
'sem o que desejo não vivo'
mas é birra mal comportada
de quem da vida apanha 
mas encara

se tudo escapa
a coberta dos anos e amores passados
escancara portas proutros ventos
relembra outras dores fatais

é senda em que me reinvento
o exercício de céu azul
vou desanuviando
e sigo em paz

porque paixão
é feitio da vida
e sem paixão
não vale mais.


Para um amigo que troveja e dança comigo

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Caosando


essa menina caótica e cega
me atrai feito peitos brancos
expostos e oferecidos:
me pega pelos flancos, 
turva meus sentidos.

ontem toquei manaus por baixo
a pele úmida no calor de um abraço
o ar pesado
que ao amor antigo
cor empresta

em fuga funesta
vi manaus de cima
seus morros ocupados
entrecortados do que resta 
de floresta

longe já, por um momento
fecho os olhos para ver
a manaus que aqui de dentro
não desgasta:
seu caos
que de paixão me reinfesta. 

sábado, 12 de abril de 2014

Jamaica brasileira

sob azulejadas nuances
vermelhos e verdes
negros retintos
e aquela amarela
breve luz de uma vela
para Jorge, o guerreiro

o mago
com a radiola em controle
me enfeitiçava manipulando sua prole:
elevava compassadas
repetidas,
as notas que invadiam todos os cantos

e eu, embriagada pela fé que em mim se inserta,
no amor, que manifesto, a tudo altera, 
vi que o mundo se movia lentamente
vi assim o despertar de uma quimera
provocando-me um intenso desapego:
o meu corpo, separado de seus prantos
foi despido de seus demônios e santos
puro encanto e alimento para o ego

transe
de suor banhada 
a pele empretecida por dentro
não me impressionara mais 
que as retinas e ouvidos cheios:
meio demente
sempre, do que há no mundo
me fiz recipiente

era para Jah 
que soavam os cantos
e eu, entregando a alma
mantive a calma
ainda que desejasse
com toda a força
que fosse pra sempre cedo
e que praquele suave degredo
o fim não viesse
jamais.

quinta-feira, 27 de março de 2014

Praia ou montanha?

Me olha de longe
morreu
virou monge?

É paisagem dentro em mim inalterada.

O coração pergunta a cada baque:
é noite? venta? neva?
chove? é seco? geia?
não sei
de ausência cheia
observo o amanhecer
na lembrança congelado
antes fosse ar em movimento
mas é amor
numa montanha de sal
sob o mar conservado.

terça-feira, 25 de março de 2014

Monumento ao 25 de março.

por toda palavra, todo gesto
todo punho fechado
erguido em justo manifesto
por toda discussão, toda política
e toda história
a memória dos irmãos criados, da mãe cuidada
das mulheres adotadas
dos amigos sinceros.

por verdades duras em horas necessárias
e omissões importantes para aliviar a dor

pelo companheiro que fostes
amigo, amante, aluno e professor
pelo sol que te saía dos olhos
pelo sorriso que alargava o dia:
minha poesia,
meu eterno amor.

segunda-feira, 24 de março de 2014

Sem feliz aniversário*

olha
voltou a chover na cidade
não deve mais ter labareda dançando no campo
e o rio logo cobrirá a praia.

olha
talvez a temperatura caia...
com a telha transparente a cozinha ficou mais clara
e logo os mosquitos invadirão tudo.

olha
sinto falta dos meninos, 
o carro precisa de reparos
e na Universidade tenho mais horas de estudo...

olha
tem tanta coisa pequena
dessas que se amontoam pra compor a vida
e se pudesse você me perguntaria
sem interromper a lida
- e daí, minha dramática?

hoje entristeço e sorumbática
já sei de tudo
quando miro pra dentro 
teu olhar me mostra a mim.

noite de vinte e três de março
a chuva voltou!
se tudo retorna
por que você não renasce?

o dia seguinte me atesta que é drama a vida que permanece
 - pudesse eu e me extirpava o calendário - 
antes nunca mais essa dor, o desvario,
o retorno vazio e sem festa 
do teu aniversário.


*para Vavá, que ao menos dentro de mim aniversaria de novo.

domingo, 23 de março de 2014















Do tipo que se encanta
feito barranco sob a chuva
lentamente vou me deixando imergir
mesmo sabendo que a corrente embaixo
é feita de um caldo de promessas fáceis
lassa e travessa me entrego
escorrego toda, cabeça e coração
em troca de tolas tardes e vazias palavras
me dou vazão.

mas vou ao fundo
e me demoro
porque tudo em volta é novo mundo

rocha, custo perceber que a correnteza seguiu
que é outro o rio
que pouco ficou
além de meu corpo só
mas sei que estou inteira
quando alguém à beira
me recolhe 
me vende como novas
as velhas promessas
me interessa
e joga de volta à margem

do fundo à margem ao fundo
essa é a ameaça:
amar é viagem e a vida é um trago.

Resisto
e se o preço é esse
eu pago.
  

terça-feira, 18 de março de 2014

Passageira

quando eu mais não vejo
meu objeto de desejo
num lampejo d'ódio
não me cego:

esvazio os olhos
do mar que me transborda
recolho o vento
e ouço histórias doutras eras

me reinvento

e pr'outros saltos
vou treinar as minhas feras.



sábado, 15 de março de 2014





















abraço amarelo
quente
depois descemos a ladeira
um do outro ainda rente

era noite e era dia
junto à calçada um veículo
se movia
e sobre nós desabou
mortal
imenso muro
em tijolo e pedra e cimento e cal

foi em segundos o assalto
a visão da ladeira, do veículo, do muro
a solidão profunda do meu peito contra o asfalto
e o escuro total

no último instante
antes de acordar, assustada e arfante
não foi grito nem dor
o que se revelou
mas angustiada descoberta 
reconhecimento, torpor
em meio a verdade incerta:
- então foi assim que eu morri!

quinta-feira, 13 de março de 2014

porque eu quis

porque era azul e não desbotava
porque foi surpresa em gesto e gosto
porque estava à espera quando eu 
desesperava
porque de juventude me cobriu o rosto
porque seguia adiante quando eu não podia
porque chorou meu pranto e riu minha alegria
porque compartilhou um átimo da vida...

porque desacatou todos meus receios
sem, contudo, meter-me freios
foi que eu o internei, sem mais rodeios 
sob o esquerdo de meus rijos seios
e que ignoro essa pergunta ardida.


Pra alegrar Francisco.

(O nego me pede um poema
não me recuso
fazer-lhe de tema, nego?
te pôr pro meu uso?
Olhe que eu abuso
e te ponho em problema...)

Mas me disse que anda triste
e o dedo em riste da vida
me comove
daí que a pergunta em mim persiste:
'bora nego, brincar de love?
plantar uma lagoa sobre o que nos magoa?
respirar sem dó o ar que enche
esse vazio?
'bora nego, prum banho de rio?
'bora entrelaçar a língua
em insidiosa prosa?
sem pensar em depois
'bora esquecer o juízo
nós dois?
invadir o paraíso
destruir a dor?
'bora nego,
brincar d'amor?


terça-feira, 11 de março de 2014

Oral

me aqueço na manhã preguiçosa
cobrindo de pele
os beijos

lábios lentos
roçando palavras
suaves, sedentos

o vento, velho libidinoso
lambe desavergonhadamente
uma cortina
e a luz penetra silenciosa
quando dispenso o trabalho da retina

pois é de puro breu
essa hora torpe que me bate
me alucina e morre à míngua
em que renasce a doce prosa
feita com a tua e a minha língua.

sexta-feira, 7 de março de 2014

De Maria e Sofia - pelo seu e nosso dia

Quero contar pra você
que me ouve ou que me lê
uma história bem antiga
mas que até hoje me instiga
e precisa ser lembrada:
É história de Maria
e de Maria Sofia
uma história de virada.

Um dia disseram à Maria
que exato por ser Maria
é que ela não poderia!
A bem mandada Maria 
ouviu essa cantoria
e seguiu ressemeando 
proposta de acinesia:

Maria disse à Maria
e a João, a Pedro e Bia
que às Marias não caberia
e a homilia se estendeu
por séculos, meses, dias:
Maria não deveria
somente por ser Maria! 

Um dia, certa Maria
filha e neta de Maria
questionou a acrasia
vinda já por tantas vias
de amigas, primas e tias.
A mal mandada Maria
julgou que não deveria,
por ser Sofia Maria,
condenada à afasia
e à eterna paralisia.

E Sofia não queria
negar em si a Maria
tampouco também queria
viver em autofagia
achava que sim, podia,
que o corpo a si lhe cabia
queria sair à rua,
voar com o vento que ia...

Com toda sua energia
pro outro lado do mundo
Sofia se transporia
e a todos gritaria
e às Marias chamaria
seu sorriso espalharia
com respeito e alegria
os direitos que exigia.

E ninguém lhes imporia 
silêncio, por medo ou cria,
aquela monofonia 
de que ela não deveria
somente por ser Maria
Maria é quem quebraria - 
Maria e Joana e Lia
E Adélia e Ana e Luzia
E Antônia e Clara e Sonía.

Esse grito de Sofia
- a mal mandada Maria - 
ecoa em mim todo dia
e exige que eu não me cale
pra que a injustiça se abale
uma certeza me guia: 
a voz de quem quer que fale
que exato por ser Maria
Maria não deveria
é machismo e hipocrisia! 

Essa história tão antiga
continua, amigo, amiga
precisando ser contada
pra que brotem e vicejem
outras Marias que almejem
nunca mais ser bem mandadas.

Se um mundo de igualdade
de amor, de liberdade 
é o mundo que nos convenha
que morra o gesto covarde
e que nasçam todo dia 
mil e uma mais Sofias 
como Maria da Penha.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Impotência


       "12 years a Slave", dirigido por Steve McQueen

quando o chicote
lambeu a pele da negra
e trovejou grito
choveu sangue
e lágrima

eu
em torpor infinito
só pude sentir vergonha
de ter nascido.


domingo, 23 de fevereiro de 2014

Seca

rápido, mas sem pressa
desliza feito rio
sua mão sobre o vazio

esgota os lamentos 
carrega as sombras do fracasso
e as toras de mal querer

inunda

agradecida
fendida e seca
a pele terra
vai te sorver

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Continho besta e sem razão

Depois de um trago pra Jah
Esperança não criou asas,
desesperou,
desceu correndo as escadas
tropeçando nas palavras
gritadas
amarrotadas 
por tanto, tanto tempo guardadas.

Cuidadosa e calmamente
já tinha guardado em si
trinta e dois Norpramin, 
vinte e três Cipramil 
mais um copo de açaí.

Me lembro bem de Esperança
porque ela foi a primeira
que vi morrer, em criança, 
no antigo Jardim Palmeira.  

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Banco de reserva

Quisera eu compor um poema
que falasse da minha incompreensão
diante do baile das luzes
que vêm e vão.

Quisera mostrar-me estupefata
diante do sol que me abandona
e da noite que me cobre exata.

Quisera eu escrever um poema
para exprimir esse luar
casado com tamanha solidão
mas a carne maturada me diz não!

E por baixo do sal
um velho peregrino
vem cantando um hino
que louva, disperso,
no amontoado do verso,
o Foda-se Futebol Club.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Coração verde

o sol veio de mansinho
sem violências nem raivas
e eu fui cursando o trilho
de um dia sem palavras
tudo tão distante e frio
tudo freio
e a vida à milhas

hoje eu passei o dia
regando a face com sal
olhando pros passarinhos
e achando tudo banal

eu sei que haverá um dia
que será só para isso,
pra de tudo se esquecer...
mas quando o sol já se ia
pro outro lado do mundo
hoje eu desejei profundo
esse dia de não ser!

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

O diabo do meu pai

O diabo do meu pai aparecia num redemoinho.
O diabo do meu pai adorava confusão: 
gostava de se meter entre irmãos que brigam, 
amigos que brigam, casais que brigam.
O diabo do meu pai era corajoso demais
e seus seguidores eram heróis.
O diabo do meu pai adorava beber,
fosse sangue, 
fosse álcool,
ou os dois.
O diabo do meu pai era ladrão.
O diabo do meu pai roubava na escola.
O diabo do meu pai às vezes se fazia de bom, 
ia orgulhoso à Igreja:
o diabo do meu pai era soberbo.
O diabo do meu pai era preguiçoso.
O diabo do meu pai não tinha data.


Foi num fevereiro que ele morreu... 
E eu sinto uma saudade do diabo 
ao lembrar das histórias de diabo
do meu pai.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Adubando a vida

Louca
faz um escarcéu
me julga e me joga
na vala comum das ações
dos chegados seus.

Sem motivos me condena
na ignorância incontida...
enquanto observo, serena,
a ironia dessa vida:

o céu, que carrega no nome,
não disfarça seu rastro de estrume. 
 

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Na coxia

a estrela brilha
e brilha e brilha
em mega-explosão
depois perde as asas
vai pra casa
e se apaga:
porque fervilha
em seu coração
um mar a milhas
e é uma ilha
sem sol
nem chão.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Entre o céu e o inferno


pouco importa o quanto você brilha
o diabo é a maravilha nas coisas
pelas quais teu desejo fervilha

pouco importa se você deseja
o diabo se enseja nas coisas
cuja posse, teu ardor areja

pouco importa se você possui
o diabo destitui todas as coisas
da utilidade que você intui

pouco importa se tem cabimento
o diabo é o tempo das coisas
e seu desencantamento

o que importa
é essa coisa torta
paraíso do você-coisa
reino eterno de não ser

porque o inferno
principia na porta
do querer.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Experiência de fé

Olho para dentro
há lugar pro sentimento
de que nada há de passar.
É você, sua presença
esse amar, essa latência
a espera e a insistência
que me fazem acreditar
que entre nós
nem a distância
nem tempestade ou bonança
poderão interpelar
o amor brotado à crista
desse par: nossa conquista!
Meu e teu,
é doce o mar.

sábado, 25 de janeiro de 2014

Paulistana


Você me assombra ainda
me batuca
confusa musa.

Seu som eterno
de rádio e carro
gente agitada
cimento e barro
grande e diversa
doce e perversa,
tão tensa e terna
és luz e breu:
tão tu, tão eu.

Longe de ti
me sinto mais tua
sutil desconforto
meu mar sem porto...

Fugi de você,
e seu trato cruento
mas você veio, enfim,
comigo e contra mim
pulsando por dentro.







quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Cada minuto de silêncio
caiu-lhe como uma gota na testa
(o tempo atesta
que muito se perde quando nada se pede
que muito se esgarça quando o ardor
força e é farsa)

Fingiu felicidade
enquanto no fundo
corroía-se por fungo
o amor que se lhe entranhava o centro.

Não negou cuidados ao viveiro
delicadamente transplantou a orquídea
regou vaso e pensamentos
farejando saudades fugidias pela fresta das horas.

Daí despiu-se do medo e firmemente
feriu a si mesmo rompendo a pele em desuso
destruiu o jardim com fúria
metendo-lhe os dedos na terra úmida
entre as raízes,- quem sabe?-
furtaria de si
o fraudulento coração.




sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Confessa e declarada

I

Passei noites com Vinícius
compartilhando nossos vícios
em mulheres e amores...
Amei de fato as melhores, 
a Bruna e a Marina
a Martha e a Adélia
a Sylvia e a Cecília...
Quanta maravilha!
Confesso que fui amante de Carlos,
de Afonso, de Pablo, de Frederico...
fora os encontros furtivos com Paulo,
com Arnaldo, com Oswald, com Chico...
Muito fugi com Luís Fernando,
e fingi prestar atenção às equações da aula 
quando
meu pensamento dançava
no pensamento de Renato.
Que barato!
Nada fiz de encoberto
já tive caso e acaso
com Roberto, Caetano, Cacaso,
e outros que nem me lembro...

Esses homens e mulheres 
que me compõem por dentro
e me decifram pra mim
nas horas que não me entendo,
com todos já visitei
o chão do inferno e do céu! 
 - mas a nenhum eu amei
do tanto que ainda amo
um poeta: Manuel!

II

Não sou virgem cem por cento:
com você me fiz Tereza,
corpo entendido, sem alma
fui um porquinho da índia
beco da cidade, trauma,
um bicho na imundície
dancei um tango argentino
na maior libertinagem
teadorei, teadoro...

Se há algo que lamento,
Amante mais do que lido
Bandeira da minha vida,
Foi não te alcançar, amigo,
Quando cheguei, nódoa inteira
tu daqui já tinhas ido...


  

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Resumo da ópera

Tátil
intentara colher
campos lavrados
de frases feitas
e atos de bem querer.

Fácil
aprendera a desejar
aquela presença
que se fizera doce
constante e intensa.

Frágil
lhe restara lamentar
a súbita ausência 
que silenciosa e sorrateira
viera se impor com violência
em cada poro e hora inteira.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

En sur, descida.

Na subida
eram sonoro carinho
os zumbidos
e os ruídos
que colhia no caminho

foi-se enchendo de tudo
ao escalar o monte
falsamente desnudo

quando no topo
tocou a eternidade por um átimo
logo soube: foi ótimo.

Por isso resolveu não lamentar a descida
derrotada em disputa com a vida
nem mais chorar por estar despedaçada
na pista gelada, vazia e silenciosa
em que, de repente,
se convertera a estrada.